Autor: David Catela

Professor Coordenador, Escola Superior de Desporto de Rio Maior, IPSantarém
CIEQV – Área Científica – Comportamento Motor

 

Na vida real, o tempo é linear, o que habitualmente designamos de seta do tempo; evolui num único sentido, do passado para o futuro, e de um modo regulado, segundo a segundo. O modo como percecionamos, sentimos e apropriamos o tempo sofre distorções. Se não vivenciarmos isso é porque não estamos a viver numa dimensão lúdica (Huizinga, 1944/2020); o tempo físico deixa de ser uma componente fundamental na regulação das nossas ações, passa a ser um fator explorável durante as nossas ações.

No entanto, durante episódios de ludismo, em termos abstratos e percetivos, o tempo pode deixar de ser linear, de ter um único sentido e mesmo uma única direção. As práticas lúdicas que envolvem algum tipo de ficção são a prova disso; por exemplo, é possível recuar no enredo, reiniciá-lo e refazê-lo, é possível alterar, trocar ou inverter papéis e funções. Naturalmente, continuamos biologicamente a envelhecer, no entanto, sobrepusemos a esse inexorável processo uma miríade de experiências cruzadas ou paralelas.

São as estratégias de sobrevivência, o requisito da especialização para a produtividade, a definição de objetivos a alcançar, que tornam as ações escravas do tempo físico. Sem essas grilhetas, o tempo torna-se mais plástico e elástico. A enculturação atual ainda é no sentido do tempo relógio, o mesmo que herdámos da revolução industrial, mecânico, rígido, pré-determinado, fragmentado; um tempo que constrange cada ação em cada momento presente; é o tempo da pontualidade.

No entanto, havemos de sentir a necessidade de outros modos de vivenciar o tempo, a experiência de uma pandemia é um bom exemplo dessa necessidade; pois em determinadas circunstâncias, principalmente quando são inabituais e inesperadas, certos valores sociais e culturais relativos ao modo como vivenciamos o tempo tornam-se inadequados.

Definitivamente, é urgente recuperarmos o tempo que possuímos dentro do nosso corpo, o tempo biológico, e o tempo que nos circunda e envolve, o tempo ecológico. Estes tempos naturais, são mais plásticos, não determinados e contínuos; mais conformes com uma vivência lúdica, porque também mais ajustados aos ritmos naturais dos nossos corpos. Tempo lúdico significa interação simultânea entre passado, presente e futuro, e organização momentânea, muito baseada em auto-organização. Quando faço comida para a minha família, gosto de usar a faca que a minha mãe usava e que se intrometam na confeção com sugestões, principalmente, se o resultado final acontecer como algo de inesperado.

A ausência de plasticidade e elasticidade no tempo do não lúdico, resulta numa extrema dependência das ações planeadas para o futuro e de uma quase impossibilidade de interagir com o passado. No tempo do não lúdico há uma sequência de ações prevista e a não modificar. A rigidez é tal que temos dificuldade em aprender com as vivências acumuladas do passado, em levantar os olhos e vislumbrar o que se aproxima no próximo futuro. Para ir trabalhar, tenho que conduzir, podendo optar autoestrada e estrada nacional; estruturalmente, ambas são idênticas: alcatrão, traços, margens, mas o modo como vivencio a viagem não é o mesmo, pela nacional tenho que me deslocar mais devagar, pontualmente parar, e dou comigo a pensar “tira os olhos da estrada”; não no sentido literal do termo, naturalmente; mas é nesses momentos que me apercebo como é pobre a visão da estrada em si e por si, cor fria e monótona e simétrica (elementos ainda mais acentuados na autoestrada), e como vida colorida, diversa e inconstante está continuamente a acontecer à minha volta. Como, quando, onde, para quê e porquê perdemos este levantar dos sentidos, a noção viva do que nos rodeia?

Será o tempo lúdico compatível com o não lúdico? Que interesse virá da miscigenação destes diferentes modos de enformar as nossas ações? Para Huizinga (1943/2020), as respostas são óbvias, as ações no tempo lúdico são essenciais para a construção das ações no tempo não lúdico, e, é através das ações no tempo lúdico que resulta evolução nas ações do tempo não lúdico; isto é, as ações do tempo não lúdico dependem das do tempo lúdico. Aliás, que outros processos se não estes acontecem quando disponibilizamos a aprendizes brinquedos didáticos e quando grandes empresas repensam o design do local e do horário de produção?

Avizinhando-se cada vez mais tempos de incertezas, qual o melhor modo de enculturarmos as gerações futuras em modos de agir que a eles se ajustem?

São tantos os modos lúdicos quantos os modos de ação, pelo que nem este facto serve de justificação para negar a miscigenação sugerida. Experimentemos.

No ludismo repetitivo (Köoij, 1997), uma ação é replicada múltiplas vezes, cópia de si mesma, num circuito quase sem correção, como no caso de uma criança a pentear uma boneca, alguém a pedalar ao longo de uma estrada; e não há dúvida que nestes casos há um prazer implícito, porque de acontecimento voluntário e supérfluo, esgotando-se no seu próprio propósito (Huizinga, 1943/2020). Mas, será que alguém com um trabalho tão repetitivo como varrer passeios ou registar compras, beneficiará de introduzir uma dimensão lúdica nessas rotineiras tarefas? Pois, não será mesmo nessas tarefas que o ludismo será mais importante, para que quem age se sinta melhor, mais completa, um pouco mais realizada? Não será por acaso que certas pessoas que desempenham este tipo de tarefas acabam por fazer exatamente isso, introduzir episódios lúdicos durante as suas rotinas, explorando pequenas variações nos seus movimentos, por vezes mesmo incluindo pinceladas artísticas ou estéticas à ação. Transformando um tempo de agir profundamente linear, num com pequenas ou suaves oscilações da sua estrutura rítmica. Seguramente que passará a haver elevadas diferenças entre ser-se polícia-sinaleiro/a e ser-se um semáforo humano.

No ludismo funcional uma sequência de ações é explorada (Bülher, 1928) e são o ritmo e o modo como se vivencia essa sequência de ações que se encontra esse prazer lúdico, como no caso da execução de vários nós, ou na execução de uma técnica desportiva. Mas, será que alguém que se especialize em determinadas técnicas, também beneficiará com a inclusão de uma dimensão lúdica em habilidades tão específicas? Respondemos com outras questões: não será a mestria das habilidades a base para se poder explorar algo novo? Não serão os acidentes, os equívocos que se insinuam ocasionalmente nessa mestria que dão origem a novas ou variantes habilidades? Tal como do nó simples pode nascer o nó duplo, ou do nó de oito o nó invertido? Tal como na busca de renovadas dinâmicas não terá nascido a técnica de mariposa da técnica de bruços? Tal como de uma linguagem informática não terão nascido outras mais? Pois será mesmo provável que o ludismo funcional propicie, apele quem age para se concentrar no processo em si, seja qual for o tempo despendido no mesmo, e que do foco nos tempos presentes desse processo este não se possa revelar transfigurado, como que numa maravilhosa dinâmica auto-organizada, sem comando, sem super ordenador, sem supervisor (Gibson, 1986), num espantoso desvio temporal resultado de um erro, de uma interferência, de uma desobediência na ação? Não será importante preservar esta margem de desvio, naturalmente em segurança? Onde nas rotinas rígidas das linhas de montagem e das extensas linhas de controlo? Impossível, a bem da segurança. Então, terá de haver também um tempo para a exploração das possíveis brechas. Não será isso que fazem hackers?

No ludismo fantasioso, eventos semióticos acontecem (Caillois, 1958/2001; cf. Smilansky, 1968), a ação bifurcada em movimentos gestémicos que servem para transmitir comunicação, tou cours, e em movimentos praxémicos que transportam informação disponível para quem a detetar (Parlebas, 1981). Diríamos que qualquer modo de comunicação ou de expressão através do corpo se pode alimentar do ludismo fantasioso: a criança se simula ações da vida diária; a mímica das representações artísticas; a encenação gesticulada dos poderes instituídos. E, como é fácil entender a resistência de desportos que propiciam a fantasia, como a Patinagem Artística, a Natação Sincronizada, ou da progressiva invasão de práticas corporais como o Hip-Hop, o Fit Combat ou a Dança de Varão nos centros de Fitness; pois todas essas culturas corporais convidam à evasão para outra persona. O ludismo fantasioso pode ser o sumo da ritualização de passagem (van Gennep, 1909/2019), em todas as práticas culturais que de algum modo possam recorrer à ação corporal codificada. É no ludismo fantasioso onde o tempo pode ser vivido de modo mais divergente e paralelo, poder-se representar distintos papéis e função, poder, a qualquer momento, invertê-los e revisitá-los, ser-se simultaneamente pessoa e persona, sentir e vivenciar essa distinção, esses seus universos paralelos.

 

Artigo publicado na Newsletter de janeiro de 2021 do CIEQV